quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

TEMPO DE SER


Para Roselane Pessoa de Albuquerque

Não te importes com os anos que vão,
mas põe teu olhar, tua força,
toda a tua expressão,
no instante presente,
nos anos que virão.
Há sempre um tempo de preparar as armas,
afiar as facas,
um tempo de reunir dados,
juntar cacos,
um tempo de procurar saber,
de experimentar.
Depois vem o tempo de usufruir  
o tempo de gozar:
Um tempo de certezas
menos incertas,
um tempo em que temos tudo para ser
e muito pouco o que perder.
Este é o tempo de agora,
o tempo que virá.
Um tempo que se fará
não do que se acerta
ou se acomoda
nem do que por fora
se aparenta,
mas daquilo que por dentro
se acrescenta.
E daquilo que de mais de dentro,
como mágica,
como luz e sonho,
se arranca
e se espalha.

Affonso Fortuna
In O eu Esfacelado
arte Naiden Stanchev

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O Sentido da Gratidão

O Homo technicus-economicus julga-se autossuficiente. Arrogante, demiurgo, autocomplacente, põe e dispõe de tudo o que o planeta lhe oferece. Outorga-se todos os direitos, ignora todos os deveres, e corta todos os laços que o unem aos outros seres humanos, à natureza, à história, ao cosmos. Leva tão longe a sua emancipação que corre o risco de soltar todas as amarras e de desligar, de se desligar, de se autoexpulsar da criação.
A sua ideologia é tão simplista que qualquer fundamentalismo religioso parece subtil e pluralista em comparação. Funciona segundo um só preceito, uma só lei, um sóparâmetro, um só padrão: o rendimento! Será difícil não perceber que cada subsídio retirado à cultura e à educação terá de ser multiplicado por cem para poder custear os serviços médicos, a ajuda social e a segurança policial? Sem conhecimento, sem visão e sem imaginação, qualquer sociedade soçobra, mais cedo ou mais tarde, no absurdo e na agressão.
Existe, contudo, um antídoto para este veneno. É a gratidão.
Só a gratidão impede a nossa correria ávida, só ela dá acesso a uma abundância sem limites. A gratidão revela que tudo é um dom e que esse dom é imerecido. Não porque somos indignos dele, segundo uma ótica moralizante, mas porque o nosso mérito nunca será suficientemente grande para contrabalançar a generosidade da vida.
Um jovem colhe uma rosa do jardim, às escondidas. Mas o jardineiro viu-o. Aproxima-
-se dele com um sorriso e pergunta-lhe:
— Porque levas essa rosa como um ladrão, quando eu me preparava para te oferecer o jardim?
À superabundância generosa da Criação, respondemos com uma avidez ardilosa. A Vida dá-nos em abundância aquilo que o nosso sistema económico lhe tira através da astúcia e da agressão manipuladoras. Que temos nós, afinal, que não tenhamos recebido como dom? Se olhar à minha volta, vejo que a resposta é “muito pouco”. A terra onde pouso os pés, o ar que respiro, de quem são? De quem é a língua que falo? E estes conhecimentos que julguei meus? Esta mão que segura a caneta? E este corpo generosamente emprestado por um tempo?
“Nada tens que não tenhas recebido. Porquê glorificares-te, então?” pergunta um Padre da Igreja.
Não existe nenhuma invenção individual que não se inscreva na interminável lista de inovações pré-existentes, nenhuma nota que não faça parte de uma sinfonia sem princípio nem fim. E, contudo, nada é mais precioso e mais insubstituível neste imenso concerto que é o mundo do que a singularidade de cada voz e de cada ser.
O início de qualquer vida consciente é a gratidão. Quando aprendemos a discernir os traços de outros seres humanos, vivos ou mortos, a nossa forma de estar na vida dilata-se e engrandece-se.
Testemunhei o episódio seguinte, aquando da visita de um amigo budista e da sua filha de três anos a nossa casa. Estávamos a tomar o pequeno-almoço, e a menina, chamada Sofia, tinha começado a riscar a mesa com a faca. O pai deteve-lhe a mãozinha, com doçura:
— Para, Sofia. De quem é esta mesa?
A miúda respondeu, amuada:
— É da Christiane.
— E antes de ser da Christiane, de quem era? A mesa é antiga, outros já devem ter comido nela.
— Era dos pais dela, dos avós dela, dos…
— E antes deles? Pertenceu a um marceneiro que comprou a madeira para a fazer. E de onde vinha a madeira? De uma árvore que um lenhador abateu. Essa árvore pertencia à floresta que a tinha protegido, à terra que a tinha alimentado, ao ar, à luz, ao universo inteiro! E esta mesa também pertence àqueles que virão depois de nós e que nascerão quando nós já não existirmos.
Um círculo fechava-se após outro, como as ondas concêntricas que se geram num lago sempre que uma pedra é lançada. E os olhos de Sofia também cresciam e se expandiam.
Todo e qualquer processo de humanização começa por ser uma homenagem às origens. Prestar homenagem aciona um mecanismo secreto que abre toda e qualquer prisão.
Quando me inclino diante do outro, o meu gesto não quer dizer que tudo nele é perfeito. Significa apenas que consegui entrever a eternidade que lhe deu corpo, a parte indestrutível do seu ser. Isso faz com que as aparências, as tentativas fracassadas, os mal-
-entendidos, os falhanços e as feridas percam a sua virulência e se esboroem sob a ação tranquila do tempo.
É-me pedido um só gesto para transformar a minha existência numa vida digna, seja qual for o sofrimento por que passei. Quando depois de uma relação infeliz, viro as costas e me vou embora, sem olhar para trás, a relação acabou. Mas a dependência permanece. Mesmo que a relação tenha sido cortada, as marcas persistentes do inacabado, do mal-estar ou da maldição persistem.
Quantas biografias, aventuras humanas e empreendimentos começam por uma porta fechada ao passado e rapidamente se veem invadidos por um vírus impercetível? Mesmo que a porta esteja fechada, os problemas atravessam as paredes. Só existe uma forma de nos libertarmos desta dependência maléfica: prestar homenagem e ter consciência da ligação universal que nos une.
Cada pessoa tenta fazer, à sua maneira, a difícil travessia da vida. Não é o seu sucesso que faz com que nos inclinemos perante ela: é a pulsão de vida e a esperança mais secreta que a habitam que nos comove e que saudamos. Quando se recebe os dons da vida sem gratidão, quando ignoramos a lei do respeito devido a cada alma, o mundo afunda-se na agonia.
Christiane Singer
N’oublie pas les chevaux écumants du passé !
Paris, Albin Michel, 2005
Tradução e adaptaçã